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uma bibliografia de trazer por casa
Nemésio, Vitorino. 2010 (edição de bolso do Plano Nacional de Leitura). Mau Tempo no Canal. Lisboa: Leya
Não me foi concedido ler este romance com a ingenuidade de um "continental" (o natural do Continente português no vocabulário ilhéu) porque a minha alma está impregnada do profundo Atlântico que, com muito orgulho, herdei de meus avós maternos. De modo que cada palavra, linha e parágrafo transportou consigo um estremeção vulcânico que não se explica.
Como também acontece na leitura de outras ficções, suspeito que com demasiada frequência, li "Mau Tempo no Canal" como se jamais quisesse terminar. Quereria permanecer como que em viagem, acompanhando Margarida Dulmo nas deambulações marinheiras, entre as ilhas do "grupo central" dos Açores, bebendo das minhas origens em convivência com os meus antepassados.
Margarida é o centro do ciclone que varre, desde o primeiro capítulo, estas ilhas: Faial, Pico e S. Jorge. Além da cultura pequeno-burguesa, a filha de Catarina Clark e Diogo Dulmo, carrega na sua condição de herdeira única, os ativos e os passivos das famílias de origem. Há uma dívida por saldar e Margarida pode ser o seu aval. Ao longo dos episódios - a qualidade literária praticamente permite a autonomia de cada um deles - três figuras masculinas emergem como seus pretendentes: João Garcia, Robert Clark e André Barreto. Cada um deles representa não apenas um paradigma de vida mas uma economia que condiciona toda a construção de um propósito que Margarida persegue, dentro da fechada cultura das ilhas, na busca de si própria.
O romance gira ao redor desta jovem que se revela atraente não tanto pelos dotes físicos como pelo estatuto social e pela ousadia do seu carácter, por vezes irreverente, desconcertante, quando não inconveniente, para os padrões de uma sociedade rural. Também neste aspeto "Mau Tempo no Canal" me parece um romance "moderno". Nemésio publica-o em 1944 mas os factos reportam à primeira década do século XX, coincidindo com o surgimento das primeiras manifestações de emancipação feminina. É curioso, aliás, perceber que as referências mais objetivamente sensuais, relativas à elegância de Margarida, não surgem senão no último episódio, quando esta revela uma maturidade de mulher casada, condição que pode não lhe trazer a felicidade mas que lhe oferece a segurança de um estatuto social resgatado. Tal acontece, porém, a partir do sacrifício de si própria, entregue a uma espécie de destino ou de acaso circunstancial.
A modernidade da narrativa revela-se também nos relatos intimistas dos sentimentos dos personagens, particularmente de Margarida, em permanente diálogo com a estonteante paisagem das ilhas. A riqueza da composição é tão intensa que, como leitores, jamais perceberemos se é a meteorologia ou a paisagem que afetam os estados de alma dos personagens ou se, pelo contrário, são estes últimos que, através do seu olhar, carregam os horizontes das diferentes cores do tempo: Àquelas palavras do velho [tio], que parecia o destino vivo e claro à sua frente, caiu uma vaga tristeza na alma de Margarida. O tio Mateus Dulmo parecia-lhe a raiz do seu ser; o seu cabelo branco uma experiência que floria nele e se tornava madura como a fruta milagrosa do Pico, dos lados da Piedade, criada à chuva de Inverno e ao bafo da lava aquecida. Margarida sentia-se como que a bordo, a caminho de Londres... (pág. 266 e 267)
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