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uma bibliografia de trazer por casa
Torga, Miguel. 2003. Diários III e IV. Lisboa : Planeta DeAgostini
O Diário IV vai de 12 de setembro de 1946 a 3 de abril de 1949.
A marca mais saliente que me deixou a leitura desta secção dos Diários de Torga foi o surgimento de temas aparentemente mais pessoais, senão íntimos, bem como uma emergente preocupação com questões de ordem filosófica como as reflexões sobre a morte e/ou a finitude da vida. Um dos acontecimentos que pode explicar tais ocorrências, terá que ver com a morte da mãe do autor, cuja primeira referência aparece num poema:
"S. Martinho de Anta, 1 de Junho de 1948.
Mãe:
Que desgraça na vida me aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti - não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!"
Mais adiante, no Gerês, a 12 de agosto de 1948, escreve um segundo poema que titula "Aniversário". Quererá isto dizer que a morte da mãe terá acontecido um ano antes, a 12 de agosto de 1947? Eis o poema:
"Mãe:
Que visita tão pura me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chora de medo e de anbandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono."
Por fim, uma nota profundamente sentida, relativa ao primeiro Natal passado sem a mãe:
"S.Martinho de Anta, Natal de 1948 - Uma consoada triste, com minha mãe a apodrecer no cemitério. À chegada, já não estava ela à porta a esperar-nos, nem ao jantar as rabanadas tinham o mesmo gosto. O velho, coitado, foi até onde pôde (...). É como se já tivesse também morrido já, mas estivesse condenado a fingir de vivo mais algum tempo."
Uma outra referência, de ordem pessoal, chamou a minha particular atenção. Tem que ver com a sua mulher. Não havia lido, até agora, outras do género: não há escritos sobre o namoro, tão-pouco sobre o casamento. Pelo contrário, o registo dominante é discreto, no plano dos acontecimentos pessoais. O texto seguinte constitui uma compreensível exceção.
"Coimbra, 17 de Abril de 1947 - Há quase uma ano sozinho, na antiga vida de solteirão. Tem sido duro, mas útil. De vez em quando faz-me bem estar só e desamparado. É nessas horas que sinto mais profundamente a significação de uma mulher ao lado do artista. A história literária (...) diz-nos pouco das companheiras quotidianas, domésticas e anónimas, a verem nascer a obra, a aquecê-la com chávenas de chá, e a renunciarem à alegria de a conhecer na emoção virginal de um leitor apanhado de surpresa.
(...)
De qualquer maneira, estou só, e sinto-me em penitência. Considero-me a cumprir a pena de susufruir um bem anos a fio, e só de vez em quando ter consciência dele."
Na mesma linha, de exceção, está a ausência de registos sobre a repressão política. Sendo do conhecimento geral que Miguel Torga era uma assumido opositor ao governo, nem por isso se revela uma qualquer espécie de militância ou compromisso político. Pelo contrário, encontrei um único texto sobre a matéria, manifestação da grandeza deste homem, de pura consciência cívica. Uma reação, com algum sentido de humor e sem aparente ressentimento, às contrariedades que fariam, qualquer de nós, enraivecer:
"Coimbra, 24 de Fevereiro de 1948 - Novamente me foi negado o passaporte para sair de Portugal. Prisioneiro! E vejam o absurdo dos zelos pliciais! Eles a pensarem que me levavam sombrios propósitos de minar a ordem, e aqui como quem se confessa o que eu queria era ir ver od Velásquez do Prado, e os Memlings de Bruges!"
De uma forma que me pareceu muito inteligente e subtil, escrevera no mês anterior:
"Coimbra, 10 de Janeiro de 1948 - A tolice de qualquer tirania é não reparar em que só governa o mortos do seu tempo. Os homens que venceu, e por isso matou. Porque os vivos, as sucessivas camadas que vão nascendo e crescendo, essas são-lhe estranhas como se habitassem num outro mundo. Para elas, todas as leis feitas são letra morta. Elas é que hão-de fazer as suas leis."
À semelhança do que havia notado no Diário II a poesia surge, por entre a narrativa, muito recorrentemente. Pergunto-me o que terá feito Torga optar por não publicar estes poemas em edição separada.
O que acontece com a ficção, que também surge aqui e ali, parece-me um tanto diferente. Gosto imenso de ler as poucas páginas que se aproximam do "conto" ou que são como manchas desenhadas do que poderia dar em romance. No presente volume, isto acontece, por exemplo, na consulta que Torga deu a uma paciente muito especial (ver Coimbra, 18 de Dezembro de 1947) de onde retiro esta pequena amostra: "(...) Desonrou-a um estudante meu conhecido, muito católico, muito modesto, muito calado. Era criada em casa dos pais dele (...). É a mesma rapariga simples, estabanada e alegre. A boca tem ainda uma certa frescura e encanto em desacordo aberto com o resto do corpo, que alargou, envelheceu e murchou. (...) Conversámos durante duas horas, e foi uma corrida vertiginosa de aventura em aventura. (...)".
Em Castelo Branco, 19 de Fevereiro de 1949 há cinco páginas de uma nostálgica incursão de um casal maduro, em busca de novas motivações, pela "cidade de guarnição". Mas a porção que mais me surpreendeu é a que foi escrita em Coimbra, [a] 31 de Janeiro de 1949. É um texto de duas páginas, muito sugestivo. Sem que esteja dito, somos levados num passeio a pé, por entre a "floresta despida" de árvores "descomunais", acompanhando, como "voyeurs", um jovem (?) casal. Mais adiante, entraremos com eles num automóvel e estaremos a ponto de sofrer um acidente. Através da leitura, experimento uma atmosfera de subtil modernidade, um erotismo delicado, sofisticado; creio que por sugestão da imagem de um cigarro aceso, na mão feminina, ou na curva da estrada que surge e perigosamente envolve os personagens que observo: "(...) ela só acreditava no que era dito em fórmulas mágicas e rimadas. O cigarro ardia-lhe entre os dedos trémulos, e deixava sair uma fita de fumo azul, quase palpável, que lhe passava diante dos olhos e os tornava mais enevoados. (...)".
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