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Quarta-feira, 23.03.16

"Diário III" de Miguel Torga

Torga, Miguel. 2003. Diários III e IV. Lisboa : Planeta DeAgostini

Ao ler a sequência dos Diários de Torga, espaçadamente, no tempo, corro o risco de perder um sentido do “todo”. Mas a minha pretensão, ao escrever estas linhas, é também perceber o quanto uma determinada leitura me “tocou” naquele preciso contexto e momento da minha vida. E a primeira nota que me fica da leitura deste Diário, Volume III, é a que se refere à imensa capacidade de viajar que Torga revela, particularmente dentro do próprio país, característica que, com muita probabilidade, ocorre em todos os seus Diários. Julgo saber que Miguel Torga (Dr. Adolfo Correia da Rocha) não conduzia automóvel pelo que só poderia viajar recorrendo aos transportes públicos ou à boa vontade dos seus amigos. Se esta condição poderia diminuir a sua mobilidade física parece, pelo contrário, tê-lo libertado de outros constrangimentos, concedendo-lhe a possibilidade de melhor observar, assimilar e registar as suas impressões de viagem.

O Diário III cobre o período que vai de 20 de maio de 1943 a 14 de agosto de 1946. A primeira das suas páginas reporta-se a Coimbra, cidade da formação académica e do exercício profissional do Dr. Adolfo Rocha. Segue para a região de Aveiro, Costa Nova e Buarcos (finais de maio, princípios de junho de 1943); parte, depois, para o Gerês e S. Miguel de Seide (julho); em agosto está na Póvoa de Varzim e desce ao Caramulo; volta ao norte, a Guimarães (Briteiros e S. Vicente) no mês de setembro; passa, de novo, por Coimbra e vai a Vide, no município de Seia (outubro de 1943); em novembro está no Alentejo (Estremoz, Marvão e Arraiolos); e por aí fora, sem nunca parar de nos surpreender com o seu trajeto de formiguinha, isto é, deambulando, sem rumo aparente.

Acerca desta sua condição de viajante, ele mesmo escreve:

“Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para que! Não sou geógrafo, tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem meios. Talvez sem eu ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se. Como acontece num grande livro, que tem páginas para lágrimas e páginas para sorrisos, assim a natureza conta uma história alegre em Viana e uma história trágica no cabo de S. Vicente.” (escrito no Fundão, Serra da Gardunha, a 24 de fevereiro de 1945)

Outra das passagens deste Diário que me toca, em termos bastante pessoais, diz respeito à sede do município de Oliveira do Hospital, concelho a que pertence a aldeia onde o meu pai nasceu (São Gião). Foi escrito a 22 de Junho de 1944 e “reza” assim:

“Quem quiser ver a Idade Média ao natural, venha aqui, a esta espantosa capela dos Ferreiros. A cavalaria, a religião e o amor, tudo na sua pureza natural.  A cavalaria, numa pequena pedra maravilhosa, que é um documento único da nossa estatuária guerreira; a religião, num retábulo fantástico, que é toda uma teologia; o amor... Mas o amor prefere talvez uma balada: (...)"

Igreja_Matriz_Oliveira_Hospital_Capela_Ferreiros

"ROMANCE"

Um cavaleiro e uma dama.
Cada qual na sua cama,
Lado a lado;
Mas voltados,
De modo que ele a não veja
E ela tenha de o ver.
Isto à sombra de uma igreja
Que os há-de absolver!

Traição dela?
Excesso dele?
Segredos que o tempo leva,
Mas deixam mágoas de pedra...
Até numa sepultura
A raiz duma amargura
Encontra o sol de que medra.

Dorme, dorme, cavaleiro,
Com tuas barbas honradas;
Dorme, também, linda dama,
Com tuas contas passadas
E teus véus medievais.
E o pecado
Deixai-o assim acordado
Para exemplo dos mortais.

 

Gosto também, bastante, da reflexão que Torga faz relativamente à relevância do que escreve; e, sobretudo, da escolha necessária entre o que é pessoal, privado, e como tal deve manter-se, e o que pode e/ou merece, ser tornado público. Interessa-me este dilema, porque eu próprio o tenho, relativamente ao que escrevo.

O exemplo que se segue, escrito em Coimbra a 17 de Junho de 1946, revela, além disso, uma erudição que surpreende quando pensamos nas humildes origens sociais de Miguel Torga. Percebe-se que estamos perante um ser com uma pontinha de genialidade, capaz de ver o que não vemos e de registar, em palavras, essa experiência sensível e intelectual.

“A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo deste meu Diário. Por que razão profunda eu escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade byroniana pode conceber o absurdo de se julgar pólo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de Rousseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe necessariamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se coloca hoje numa posição tão ridícula.

Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação. Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.

No meu Diário creio que há muita literatura, também. Certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na ninha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e de alegria.

Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe do pouco de artistas que ignora a falta de sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.

Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.”

Como se viu, Torga descreve-se a si próprio como “intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade”. Vários são os arroubos em que não esconde a sua dureza e aridez transmontana. Mas nem por isso nos deixa de chocar certas passagens cruas, com a que segue, escrita no Gerês a 6 de agosto de 1944:

“Disse hoje isto a uma destas senhoras que vem aqui tratar da icterícia: - Olhe, eu tenho mais respeito por um animal do que por vocês. Ao menos uma cadela pare, amamenta os filhos, não tem vícios e é natural. Vocês passam a vida a levantar ou a abaixar a saia conforme as ordens de Paris, a pôr na cabeça quantas parvoíces vos lembram, e, sobretudo, a exibir um sexo imundo que, para limpeza da humanidade, devia ser cosido com uma agulha de albarda.”

A imagem que Torga tem de si próprio confunde-se, portanto com a paisagem de onde emerge o seu corpo e a sua personalidade. Os registos que se seguem revelam uma inspiração renascentista – o nu físico como ponto de partida – com um toque oriental na primeira (o poema “Nirvana” escrito na praia de Lavadores, em Vila Nova de Gaia, a 23 de maio de 1945) ou um traço neo-realista no segundo (“Ode”, escrito na mesma praia mas um ano e três meses depois, a 14 de Agosto de 1945).

“NIRVANA”

Nu, como Apolo, no areal salgado.
(A roupa era o pudor da covardia.)
E agora cresçam versos a meu lado:
Estou deitado
Num lençol de poesia!

“ODE”

Eis-me nu e singelo!
Areia branca e o meu corpo em cima.
Um puro homem, natural e belo,
De carne que não peca e que não rima.

A linha do horizonte e um nível quieto;
As velas, de cansaço, adormeceram;
E penas brancas, que eram luto preto,
Perderam-se no azul de onde vieram.

Sol e frescura em toda a grande praia
Onde não pode haver agricultura;
Esterilidade limpa, que não caia
De pão e vinho a cósmica fartura.

Dançam toninhas lúdicas no céu
Que visitam ligeiras e felizes;
Uma força sonâmbula as ergueu,
Mas seguras a seiva das raízes.

Nem paz, nem guerra, nem desarmonia;
O sexo alegre, mas a repousar;
Um pleno, largo e caudaloso dia,
Sem horas e minutos a passar.

Vem até mim, onda que trazes vida!
Soro da redenção!
Vem como o sangue doutra mãe pedida
Na hora de dar mundo ao coração!

Por fim, o poema “O Bispo”, escrito no Porto a 8 de Maio de 1944, quando se reconhece, numa espécie de caricatura, numa pintura de Alvarez.

Alvarez_Torga_Bispo

Soturno como um cipreste,
(...)
Olhos cavados de fé,
Nariz curvo e descaído,
Boca rasgada e torcida.
Até na tinta se vê
Que não anda bem na vida
Quem já no céu está perdido
(...)
Foi o pintor Alvarez
Que me pintou tal e qual:
Inquisidor castelhano
A fazer um entremês
Mais humano
Em Portugal.

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por JNobre



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