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uma bibliografia de trazer por casa
Torga, Miguel. 1977 (4.a edição;1.a edição em 1943). Diário (2.o volume). Coimbra
O presente volume cobre o período que vai de 3 de Setembro de 1941 a 16 Maio de 1943.
Um dos aspetos fascinantes destes textos, quase íntimos, de Torga, tem que ver com os lugares onde são escritas as notas diárias. Percorrê-las, permitir-nos-ia reconstituir os seus intinerários de caminheiro de paisagens, naturais e humanas. E como são determinantes, esses caminhos, para compreender o Homem, este homem!
Por isso me chamou particular atenção, a passagem que abaixo reproduzo, na íntegra. Estamos na Serra da Lousã mas, como veremos, chegaremos ao Gerez: "Faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar." Torga não hesita em afirmar que à paisagem deve as poucas alegrias que teve no mundo já que "os homens só me deram tristezas". E considera: "ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam"; certo é que até os amigos, mesmo os mais próximos lhe "cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração".
As descrições das paisagens, extraordinariamente sugestivas, pretendem fugir aos estereótipos que afirma abominar. Como tal, pede "ao destino" que o "poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e floresta". A sua observação é física, táctil: "A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa", "as dobras e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre, no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor." "Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno." Num quase êxtase final declara, diante das "fundas e agrestes rugas de Portugal" que jamais viu coisa mais bela no mundo que "um tufo de relva" que encontrou no alto das penedias do Gerez. A arte, nas suas diferentes expressões, será coisa sublime mas, para este homem universal, nada se pode comparar ao "rasgão mais humilde" de um território que compara a um tecido de lã, grosseiro - a estamenha - e a que autor chama "mãe".
Segue-se o texto completo do referido parágrafo:
"Açor, Serra da Lousã, 25 de Outubro de 1942 - Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ou quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que um panorama me interessou como garagarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre, no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha de um perfil. Lá está o exemplo de Miguel Àngelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nuca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar em dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!"
A riqueza das referências de ordem cultural relativas à leitura de autores "estrangeiros", particularmente os de língua francesa, bem como à cultura clássica de todas épocas, passando pela geografia das cidades desta "velha" Europa, dizem bem da erudição adquirida por mérito de rara capacidade intelectual deste filho de Sabrosa, algo que verdadeiramente desafia convenções.
Um dos aspetos que me fica da leitura deste segundo volume dos diários de Miguel Torga, é uma maior recorrência de poemas que, como contra-ponto, parecem surgir em maior quantidade, em comparação com o primeiro volume, e o surgimento de textos quase ficcionados, com um número razoável de páginas e uma narrativa de "conto". Uma e outra destas constatações, bem como a edição destes volumes pouco tempo depois de serem redigidos, leva-me a pensar que o dr. Adolfo Rocha teve cedo a perspetiva de "autor", de pensador e escritor "profissional" rigoroso e criterioso em todos os aspetos que dizem respeito à produção de uma obra literária.
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