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uma bibliografia de trazer por casa
Bessa-Luís, Agustina. 2002. Fanny Owen. Público. Porto
Para se apreciar um livro, é conveniente conhecer o seu autor, o ambiente em que se move e respira. Este conhecimento revela-nos a época, do livro e do autor, mas também pode ajudar a explicar, até certo ponto, qual o "propósito " de ambos. Este não é o primeiro livro de Agustina que leio. Por isso posso dizer que, apesar da sua escrita densa, me sinto bem no seu ambiente literário. Nem sei bem porquê. Leio-a com relativa fluídez, avançando com humildade como se desbravasse um terreno que me é desconhecido, sem medo de perder algumas das partes, em benefício do "todo", do "geral". Na verdade, posso ler um livro como faço uma viagem: absolutamente deslumbrado com quanto me é dado ver e desfrutar sabendo que o tempo apagará as marcas dessa experiência, assim que a leitura seja interrompida. Mas, exatamente como numa viagem, algo da sua luz, do seu perfume, do seu ambiente, ficará. E ressurgirá na memória quando se estabelecer uma qualquer relação com um outro livro, um outro autor, uma outra paisagem... Assim, para melhor compreender "Fanny Owen", seria conveniente conhecer melhor a sua autora, ser capaz de a situar no contexto literário português ou até, talvez mais, no da literatura europeia. A mim, parece-me haver, na sua obra como neste livro, uma vertente fortemente "psi", que muito deve à emergência do freudianismo da época em que se formou. Há também um certo feminismo, muito complexo e sofisticado, que não se fecha num maniqueísmo convencional, "homem" versus "mulher", antes reflecte uma tensão criativa que parece cara a Agustina.
"Fanny Owen" é um livro perturbador que fala da tragédia humana e dos seus equívocos. O ambiente em que decorre é não apenas trágico como romântico, lírico e rústico, adequado ao século XIX a que se reporta. Algumas passagens (bastantes até) revelam-se impenetráveis, a exigir do leitor uma dissecação da frase, uma consideração cuidadosa de cada uma das palavras que a compõem, como se estivéssemos perante uma peça de arte "barroca", a desconstruir. O enredo transmite-nos uma permanente demanda de sentido, uma angustiada busca do "porquê", que jamais se encontra. Assim são, também, as desesperadas cavalgadas de José Augusto Magalhães pelas matas da Aboboreira, sem hora de partida ou de chegada...
Como num vulgar romance de amor (ainda que nada haja de vulgar neste romance) a história, baseada em factos reais, refere-se a dois triângulos amorosos: Francisca Owen (Fanny), José Augusto Magalhães e Camilo Castelo Branco, por um lado; Francisca, Maria Owen (irmã mais velha de Fanny) e José Augusto, por outro. O erotismo é intenso, mas latente, não-explícito. Não surpreende que o próprio casamento de Fanny e José Augusto não chegue realmente a consumar-se, apesar da partilha de vida, de casas e de bens. Para escrever esta obra ficcionada, Agustina fez um cuidadoso trabalho de investigação. Consultou os escritos de Camilo Castelo Branco, espalhados por crónicas publicadas nos jornais da época, nos diários e nas obras de ficção; mas também os cadernos deixados pelos malogrados Francisca Owen e José Augusto. Assim, pôde imaginar ou reconstruir diálogos, cenários e deslocações, citando os apontamentos dos respectivos protagonistas, pondo-os, frequentemente a "falar", em discurso direto.
Apesar de não serem profundos os meus conhecimentos da obra de Camilo Castelo Branco, ao ler este livro fiquei, por vezes, com a sensação de que poderia ter sido ele a escrevê-lo. Talvez tenha sido esse um dos motivos que levou Manoel de Oliveira a realizar "Francisca" (1981) depois de ter realizado "Amor de Perdição" (1978).
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