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livros-abertos

uma bibliografia de trazer por casa



Sábado, 17.09.16

"Jesus Cristo bebia cerveja" de Afonso Cruz

Jesus_bebia_cerveja

Cruz, Afonso. 2015. Jesus Cristo bebia cerveja. Penguin. Lisboa

É o primeiro livro de Afonso Cruz que leio. Nada sei, por agora, do autor (suas origens, demandas, percurso pessoal...) o que me permite lê-lo com alguma ingenuidade. Sempre gostei deste estado de relativa ignorância na abordagem das coisas, das viagens às "leituras" de todo o tipo de experiências, emocionais ou intelectuais. Mas esta é uma postura com riscos evidentes; desde logo, pela possibilidade de não percecionarmos "bem" a realidade, a partir da nossa posição subjectiva, sempre enviesada. Vale a pena correr o risco. Afinal, não há verdadeiramente leituras que não sejam subjectivas, enviesadas, aculturadas e... pré-conceptuais. Vamos lá.

O meu sentimento dominante é a surpresa. Surpreende-me o ritmo certo dos curtos capítulos, o aparente sincretismo das frases mas também o desenho, o traço curto e preciso, as cores (apenas) necessárias; os quadros sucedem-se como aguarelas que surgem de cada vez que retomamos a leitura. Surpreendem-me ainda as metáforas, o vai-vem entre um certo naturalismo e a abstração intelectual protagonizado, sobretudo, pela figura do professor Borja; as questões suscitadas, do âmbito da filosofia, ciência e religião, são certeiras, acutilantes, e propõem-nos pertinentes caminhos de investigação.

Como desconheço o percurso de Cruz nada sei da sua relação com Saramago; mas este anda por ali e pode surgir, discreto (como Hitchcock quando se perfila nos filmes que produs). Há uma tonalidade neo-realista neste romance rural, alentejano, que me faz lembrar Saramago (a vários títulos) mas também o Virgílio Ferreira de "Vagão Jota" e o Altino do Tojal do "Os Putos". A aproximação a Saramago faz-se também no debate das questões mais profundas, as inquietações que emergem da incessante busca de esclarecimento relativas, por exemplo, ao mistério de Deus e da Morte. É uma abordagem incontornavelmente marcada pela cultura, dominante entre os portugueses, que à falta de melhor, poderíamos designar por "catolicismo". Com efeito, as questões suscitadas em "Jesus Cristo bebia cerveja" fizeram-me lembrar algumas páginas de "Caim" e de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", dois conhecidos títulos da extensa obra de José Saramago.

Muitas são as frases, parágrafos ou sequências que gostaria de aqui reproduzir a título de "amostra". Escolho a que segue por se referir a Borja, personagem que melhor parece traduzir a procura de sentido deste livro, e por ilustrar muito bem essa clivagem, sempre presente ainda que nem sempre clara, entre o mundo da ciência e o mundo da espiritualidade ou, melhor, da emoção:

"O professor Borja e Celeste [sua mulher] passaram a acreditar nesse Nada. O espaço deixado pelo desaparecimento da filha [Margarida, morta por envenenamento acidental] não fora ocupado pela natureza (essa natureza que abomina o vazio e, no entanto, é incapaz de preencher o Nada que amorte deixa). Há muita incompetência na forma como como a natureza preenche os espaços, falta-lhe capacidade para se alojar nos lugares metafísicos. O professor Borja desejaria poder preencher o seu vazio com radiações, partículas e subpartículas do átomo, lugares-comuns ou mesmo telenovelas mexicanas, mas nada entra nesse espaço de dor. O adágio em latim, natura abhorret vacuum, essa frase que diz que a natureza não gosta nada do vazio, deveria ser outro: natura latinam linguam nono loquitur, ou seja, a natureza não percebe nada de latim.

Celeste interrogava-se sobre se Deus teria sofrido tanto quanto ela. Questionava se Deus, depois da desobediência dos seus filhos, [o "pecado" de Margarida],  se teria agachado na casa de banho do Céu, seco pelas lágrimas mais intensas que se pode chorar, e arrancado os cabelos (que estão todos contados). Ou teria Ele vivido sem culpas, com a justifificação do livre-arbítrio, esse engodo fatal? Para Celeste haveria alguma desculpa possível? Ela sentia que não. Deus tinha a Teologia a suportar os seus erros, o livre-alvedrio conveniente e um advogado como Santo Agostinho, mas ela só tinha um cônjuge pararleo a si mesmo."

Não se pense, apesar do que antecede, que esta ficção se fica por um registo introspectivo, suscetível de aborrecer determinado tipo de leitores. Pelo contrário. A estória pode agradar a quem aprecie o registo "policial" já que envolve a intriga e o crime, com o seu final surpreendente.

 

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por JNobre


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