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uma bibliografia de trazer por casa
Torga, Miguel.1989 (7.a edição; 1.a edição em 1941). Diário (1.o volume). Coimbra
O primeiro volume, de um total de dezasseis, do "Diário" de Miguel Torga cobre o período que vai de 3 de Janeiro de 1932 a 15 de Agosto de 1941. A sua primeira edição data deste último ano.
O livro começa com curtas e irregulares participações, como que numa hesitação de início. Fez-me lembrar os tweets contemporâneos, na limitação, um tanto ascética, do número de palavras. Os textos vão ganhando, progressivamente, mais "corpo", registos novos e quase tocam o exercício do ensaio, algo que no segundo volume dos Diário será mais evidente. De quando em vez, uma poesia, como um lugar privilegiado de paragem e contemplação das paisagens que Torga pinta como se recorresse a um caderno de viagens.
Gosto de "diários", esse estilo quase epistolar que, mais que os demais tipos de registo escrito, nasce de uma inquietação, de uma necessidade de escrever. Por isso, amiúde me revejo no que leio, como é o caso desta passagem do viandante que, daqui e dali, não conhece já, verdadeiramente, a sua casa: "S. Martinho de Anta, 5 de Março de 1934 - Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende - é esta. A comida que o meu estômago deseja - é esta. O chão que os meus pés sabem pisar - é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal."
Particularmente interessantes, seja no presente volume, seja no volume II, são as referências críticas à literatura. A título de xemplo, escolhi este "quadro" que é como uma pintura de Malhôa (1855-1933): "Coimbra, 14 de Outubro de 1937 - Este Camilo, com o devido respeito, lembra-me sempre uma romaria... Muita gente, muito vinho, música, a procissão solene com o Brasileiro que paga tudo à vara do pálio, a missa, o sermão, a menina que comunga, o homem da vermelhinha, o jantar na Residência, e o arraial à noite, com foguetes de lágrimas, onde se acaba tudo aos tiros e às facadas."
Torga, Miguel. 1977 (4.a edição;1.a edição em 1943). Diário (2.o volume). Coimbra
O presente volume cobre o período que vai de 3 de Setembro de 1941 a 16 Maio de 1943.
Um dos aspetos fascinantes destes textos, quase íntimos, de Torga, tem que ver com os lugares onde são escritas as notas diárias. Percorrê-las, permitir-nos-ia reconstituir os seus intinerários de caminheiro de paisagens, naturais e humanas. E como são determinantes, esses caminhos, para compreender o Homem, este homem!
Por isso me chamou particular atenção, a passagem que abaixo reproduzo, na íntegra. Estamos na Serra da Lousã mas, como veremos, chegaremos ao Gerez: "Faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar." Torga não hesita em afirmar que à paisagem deve as poucas alegrias que teve no mundo já que "os homens só me deram tristezas". E considera: "ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam"; certo é que até os amigos, mesmo os mais próximos lhe "cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração".
As descrições das paisagens, extraordinariamente sugestivas, pretendem fugir aos estereótipos que afirma abominar. Como tal, pede "ao destino" que o "poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e floresta". A sua observação é física, táctil: "A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa", "as dobras e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre, no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor." "Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno." Num quase êxtase final declara, diante das "fundas e agrestes rugas de Portugal" que jamais viu coisa mais bela no mundo que "um tufo de relva" que encontrou no alto das penedias do Gerez. A arte, nas suas diferentes expressões, será coisa sublime mas, para este homem universal, nada se pode comparar ao "rasgão mais humilde" de um território que compara a um tecido de lã, grosseiro - a estamenha - e a que autor chama "mãe".
Segue-se o texto completo do referido parágrafo:
"Açor, Serra da Lousã, 25 de Outubro de 1942 - Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ou quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. Paciência, camarada, que são apenas dois minutos. O coração ainda puxa, mas já pede de vez em quando, pelo amor de Deus, um pouco de caridade cristã. De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que um panorama me interessou como garagarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre, no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha de um perfil. Lá está o exemplo de Miguel Àngelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nuca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar em dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!"
A riqueza das referências de ordem cultural relativas à leitura de autores "estrangeiros", particularmente os de língua francesa, bem como à cultura clássica de todas épocas, passando pela geografia das cidades desta "velha" Europa, dizem bem da erudição adquirida por mérito de rara capacidade intelectual deste filho de Sabrosa, algo que verdadeiramente desafia convenções.
Um dos aspetos que me fica da leitura deste segundo volume dos diários de Miguel Torga, é uma maior recorrência de poemas que, como contra-ponto, parecem surgir em maior quantidade, em comparação com o primeiro volume, e o surgimento de textos quase ficcionados, com um número razoável de páginas e uma narrativa de "conto". Uma e outra destas constatações, bem como a edição destes volumes pouco tempo depois de serem redigidos, leva-me a pensar que o dr. Adolfo Rocha teve cedo a perspetiva de "autor", de pensador e escritor "profissional" rigoroso e criterioso em todos os aspetos que dizem respeito à produção de uma obra literária.
Torga, Miguel. 2003. Diários III e IV. Lisboa : Planeta DeAgostini
Ao ler a sequência dos Diários de Torga, espaçadamente, no tempo, corro o risco de perder um sentido do “todo”. Mas a minha pretensão, ao escrever estas linhas, é também perceber o quanto uma determinada leitura me “tocou” naquele preciso contexto e momento da minha vida. E a primeira nota que me fica da leitura deste Diário, Volume III, é a que se refere à imensa capacidade de viajar que Torga revela, particularmente dentro do próprio país, característica que, com muita probabilidade, ocorre em todos os seus Diários. Julgo saber que Miguel Torga (Dr. Adolfo Correia da Rocha) não conduzia automóvel pelo que só poderia viajar recorrendo aos transportes públicos ou à boa vontade dos seus amigos. Se esta condição poderia diminuir a sua mobilidade física parece, pelo contrário, tê-lo libertado de outros constrangimentos, concedendo-lhe a possibilidade de melhor observar, assimilar e registar as suas impressões de viagem.
O Diário III cobre o período que vai de 20 de maio de 1943 a 14 de agosto de 1946. A primeira das suas páginas reporta-se a Coimbra, cidade da formação académica e do exercício profissional do Dr. Adolfo Rocha. Segue para a região de Aveiro, Costa Nova e Buarcos (finais de maio, princípios de junho de 1943); parte, depois, para o Gerês e S. Miguel de Seide (julho); em agosto está na Póvoa de Varzim e desce ao Caramulo; volta ao norte, a Guimarães (Briteiros e S. Vicente) no mês de setembro; passa, de novo, por Coimbra e vai a Vide, no município de Seia (outubro de 1943); em novembro está no Alentejo (Estremoz, Marvão e Arraiolos); e por aí fora, sem nunca parar de nos surpreender com o seu trajeto de formiguinha, isto é, deambulando, sem rumo aparente.
Acerca desta sua condição de viajante, ele mesmo escreve:
“Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para que! Não sou geógrafo, tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem meios. Talvez sem eu ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se. Como acontece num grande livro, que tem páginas para lágrimas e páginas para sorrisos, assim a natureza conta uma história alegre em Viana e uma história trágica no cabo de S. Vicente.” (escrito no Fundão, Serra da Gardunha, a 24 de fevereiro de 1945)
Outra das passagens deste Diário que me toca, em termos bastante pessoais, diz respeito à sede do município de Oliveira do Hospital, concelho a que pertence a aldeia onde o meu pai nasceu (São Gião). Foi escrito a 22 de Junho de 1944 e “reza” assim:
“Quem quiser ver a Idade Média ao natural, venha aqui, a esta espantosa capela dos Ferreiros. A cavalaria, a religião e o amor, tudo na sua pureza natural. A cavalaria, numa pequena pedra maravilhosa, que é um documento único da nossa estatuária guerreira; a religião, num retábulo fantástico, que é toda uma teologia; o amor... Mas o amor prefere talvez uma balada: (...)"
"ROMANCE"
Um cavaleiro e uma dama.
Cada qual na sua cama,
Lado a lado;
Mas voltados,
De modo que ele a não veja
E ela tenha de o ver.
Isto à sombra de uma igreja
Que os há-de absolver!
Traição dela?
Excesso dele?
Segredos que o tempo leva,
Mas deixam mágoas de pedra...
Até numa sepultura
A raiz duma amargura
Encontra o sol de que medra.
Dorme, dorme, cavaleiro,
Com tuas barbas honradas;
Dorme, também, linda dama,
Com tuas contas passadas
E teus véus medievais.
E o pecado
Deixai-o assim acordado
Para exemplo dos mortais.
Gosto também, bastante, da reflexão que Torga faz relativamente à relevância do que escreve; e, sobretudo, da escolha necessária entre o que é pessoal, privado, e como tal deve manter-se, e o que pode e/ou merece, ser tornado público. Interessa-me este dilema, porque eu próprio o tenho, relativamente ao que escrevo.
O exemplo que se segue, escrito em Coimbra a 17 de Junho de 1946, revela, além disso, uma erudição que surpreende quando pensamos nas humildes origens sociais de Miguel Torga. Percebe-se que estamos perante um ser com uma pontinha de genialidade, capaz de ver o que não vemos e de registar, em palavras, essa experiência sensível e intelectual.
“A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo deste meu Diário. Por que razão profunda eu escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade byroniana pode conceber o absurdo de se julgar pólo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de Rousseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe necessariamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação. Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No meu Diário creio que há muita literatura, também. Certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na ninha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e de alegria.
Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe do pouco de artistas que ignora a falta de sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.”
Como se viu, Torga descreve-se a si próprio como “intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade”. Vários são os arroubos em que não esconde a sua dureza e aridez transmontana. Mas nem por isso nos deixa de chocar certas passagens cruas, com a que segue, escrita no Gerês a 6 de agosto de 1944:
“Disse hoje isto a uma destas senhoras que vem aqui tratar da icterícia: - Olhe, eu tenho mais respeito por um animal do que por vocês. Ao menos uma cadela pare, amamenta os filhos, não tem vícios e é natural. Vocês passam a vida a levantar ou a abaixar a saia conforme as ordens de Paris, a pôr na cabeça quantas parvoíces vos lembram, e, sobretudo, a exibir um sexo imundo que, para limpeza da humanidade, devia ser cosido com uma agulha de albarda.”
A imagem que Torga tem de si próprio confunde-se, portanto com a paisagem de onde emerge o seu corpo e a sua personalidade. Os registos que se seguem revelam uma inspiração renascentista – o nu físico como ponto de partida – com um toque oriental na primeira (o poema “Nirvana” escrito na praia de Lavadores, em Vila Nova de Gaia, a 23 de maio de 1945) ou um traço neo-realista no segundo (“Ode”, escrito na mesma praia mas um ano e três meses depois, a 14 de Agosto de 1945).
“NIRVANA”
Nu, como Apolo, no areal salgado.
(A roupa era o pudor da covardia.)
E agora cresçam versos a meu lado:
Estou deitado
Num lençol de poesia!
“ODE”
Eis-me nu e singelo!
Areia branca e o meu corpo em cima.
Um puro homem, natural e belo,
De carne que não peca e que não rima.
A linha do horizonte e um nível quieto;
As velas, de cansaço, adormeceram;
E penas brancas, que eram luto preto,
Perderam-se no azul de onde vieram.
Sol e frescura em toda a grande praia
Onde não pode haver agricultura;
Esterilidade limpa, que não caia
De pão e vinho a cósmica fartura.
Dançam toninhas lúdicas no céu
Que visitam ligeiras e felizes;
Uma força sonâmbula as ergueu,
Mas seguras a seiva das raízes.
Nem paz, nem guerra, nem desarmonia;
O sexo alegre, mas a repousar;
Um pleno, largo e caudaloso dia,
Sem horas e minutos a passar.
Vem até mim, onda que trazes vida!
Soro da redenção!
Vem como o sangue doutra mãe pedida
Na hora de dar mundo ao coração!
Por fim, o poema “O Bispo”, escrito no Porto a 8 de Maio de 1944, quando se reconhece, numa espécie de caricatura, numa pintura de Alvarez.
Soturno como um cipreste,
(...)
Olhos cavados de fé,
Nariz curvo e descaído,
Boca rasgada e torcida.
Até na tinta se vê
Que não anda bem na vida
Quem já no céu está perdido
(...)
Foi o pintor Alvarez
Que me pintou tal e qual:
Inquisidor castelhano
A fazer um entremês
Mais humano
Em Portugal.
Torga, Miguel. 2003. Diários III e IV. Lisboa : Planeta DeAgostini
O Diário IV vai de 12 de setembro de 1946 a 3 de abril de 1949.
A marca mais saliente que me deixou a leitura desta secção dos Diários de Torga foi o surgimento de temas aparentemente mais pessoais, senão íntimos, bem como uma emergente preocupação com questões de ordem filosófica como as reflexões sobre a morte e/ou a finitude da vida. Um dos acontecimentos que pode explicar tais ocorrências, terá que ver com a morte da mãe do autor, cuja primeira referência aparece num poema:
"S. Martinho de Anta, 1 de Junho de 1948.
Mãe:
Que desgraça na vida me aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti - não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!"
Mais adiante, no Gerês, a 12 de agosto de 1948, escreve um segundo poema que titula "Aniversário". Quererá isto dizer que a morte da mãe terá acontecido um ano antes, a 12 de agosto de 1947? Eis o poema:
"Mãe:
Que visita tão pura me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chora de medo e de anbandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono."
Por fim, uma nota profundamente sentida, relativa ao primeiro Natal passado sem a mãe:
"S.Martinho de Anta, Natal de 1948 - Uma consoada triste, com minha mãe a apodrecer no cemitério. À chegada, já não estava ela à porta a esperar-nos, nem ao jantar as rabanadas tinham o mesmo gosto. O velho, coitado, foi até onde pôde (...). É como se já tivesse também morrido já, mas estivesse condenado a fingir de vivo mais algum tempo."
Uma outra referência, de ordem pessoal, chamou a minha particular atenção. Tem que ver com a sua mulher. Não havia lido, até agora, outras do género: não há escritos sobre o namoro, tão-pouco sobre o casamento. Pelo contrário, o registo dominante é discreto, no plano dos acontecimentos pessoais. O texto seguinte constitui uma compreensível exceção.
"Coimbra, 17 de Abril de 1947 - Há quase uma ano sozinho, na antiga vida de solteirão. Tem sido duro, mas útil. De vez em quando faz-me bem estar só e desamparado. É nessas horas que sinto mais profundamente a significação de uma mulher ao lado do artista. A história literária (...) diz-nos pouco das companheiras quotidianas, domésticas e anónimas, a verem nascer a obra, a aquecê-la com chávenas de chá, e a renunciarem à alegria de a conhecer na emoção virginal de um leitor apanhado de surpresa.
(...)
De qualquer maneira, estou só, e sinto-me em penitência. Considero-me a cumprir a pena de susufruir um bem anos a fio, e só de vez em quando ter consciência dele."
Na mesma linha, de exceção, está a ausência de registos sobre a repressão política. Sendo do conhecimento geral que Miguel Torga era uma assumido opositor ao governo, nem por isso se revela uma qualquer espécie de militância ou compromisso político. Pelo contrário, encontrei um único texto sobre a matéria, manifestação da grandeza deste homem, de pura consciência cívica. Uma reação, com algum sentido de humor e sem aparente ressentimento, às contrariedades que fariam, qualquer de nós, enraivecer:
"Coimbra, 24 de Fevereiro de 1948 - Novamente me foi negado o passaporte para sair de Portugal. Prisioneiro! E vejam o absurdo dos zelos pliciais! Eles a pensarem que me levavam sombrios propósitos de minar a ordem, e aqui como quem se confessa o que eu queria era ir ver od Velásquez do Prado, e os Memlings de Bruges!"
De uma forma que me pareceu muito inteligente e subtil, escrevera no mês anterior:
"Coimbra, 10 de Janeiro de 1948 - A tolice de qualquer tirania é não reparar em que só governa o mortos do seu tempo. Os homens que venceu, e por isso matou. Porque os vivos, as sucessivas camadas que vão nascendo e crescendo, essas são-lhe estranhas como se habitassem num outro mundo. Para elas, todas as leis feitas são letra morta. Elas é que hão-de fazer as suas leis."
À semelhança do que havia notado no Diário II a poesia surge, por entre a narrativa, muito recorrentemente. Pergunto-me o que terá feito Torga optar por não publicar estes poemas em edição separada.
O que acontece com a ficção, que também surge aqui e ali, parece-me um tanto diferente. Gosto imenso de ler as poucas páginas que se aproximam do "conto" ou que são como manchas desenhadas do que poderia dar em romance. No presente volume, isto acontece, por exemplo, na consulta que Torga deu a uma paciente muito especial (ver Coimbra, 18 de Dezembro de 1947) de onde retiro esta pequena amostra: "(...) Desonrou-a um estudante meu conhecido, muito católico, muito modesto, muito calado. Era criada em casa dos pais dele (...). É a mesma rapariga simples, estabanada e alegre. A boca tem ainda uma certa frescura e encanto em desacordo aberto com o resto do corpo, que alargou, envelheceu e murchou. (...) Conversámos durante duas horas, e foi uma corrida vertiginosa de aventura em aventura. (...)".
Em Castelo Branco, 19 de Fevereiro de 1949 há cinco páginas de uma nostálgica incursão de um casal maduro, em busca de novas motivações, pela "cidade de guarnição". Mas a porção que mais me surpreendeu é a que foi escrita em Coimbra, [a] 31 de Janeiro de 1949. É um texto de duas páginas, muito sugestivo. Sem que esteja dito, somos levados num passeio a pé, por entre a "floresta despida" de árvores "descomunais", acompanhando, como "voyeurs", um jovem (?) casal. Mais adiante, entraremos com eles num automóvel e estaremos a ponto de sofrer um acidente. Através da leitura, experimento uma atmosfera de subtil modernidade, um erotismo delicado, sofisticado; creio que por sugestão da imagem de um cigarro aceso, na mão feminina, ou na curva da estrada que surge e perigosamente envolve os personagens que observo: "(...) ela só acreditava no que era dito em fórmulas mágicas e rimadas. O cigarro ardia-lhe entre os dedos trémulos, e deixava sair uma fita de fumo azul, quase palpável, que lhe passava diante dos olhos e os tornava mais enevoados. (...)".
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