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uma bibliografia de trazer por casa
Tavares, Miguel Sousa. 2013. Madrugada Suja. Lisboa: Clube do Autor
Relativamente bem construída, é uma ficção que se segue sem esforço, ainda que algumas imagens possam, em certa medida, agredir-nos. Mas não me pareceu um livro brilhante - gostei bem mais de "Equador" (2003) ou até de "No Teu Deserto" (2009) - pelo contrário, apesar da contemporaneidade dos temas abordados, encontrei algumas inconsistências narrativas, desculpáveis. Refiro-me, por exemplo, à questão do "licenciamento tácito" de um empreendimento turístico em violação da reserva ecológica nacional. É improvável que tal pudesse ocorrer, já que o deferimento tácito só se opera, no pressuposto de que não sejam violadas leis, normas regulamentares e, como neste caso, instrumentos de gestão territorial. Assim, ainda que a câmara municipal, ficcionada, pudesse utilizar um tal expediente, certamente que outras instâncias, eventualmente superiores, acabariam por promover a anulação de um qualquer despacho de aprovação. Mas enfim: admito que o autor saiba realmente de algo semelhante que assim possa ter acontecido pelo que é razoável oferecermos o benefício da dúvida (tanto mais que Sousa Tavares tem formação jurídica e exerceu, com indiscutível prestígio, a profissão de repórter). Além disso, facilmente se percebe que a intenção primeira da narrativa é denunciar formas, mais ou menos ardilosas, de contornar a lei e, deste modo, oferecer-nos uma narrativa (im)provável.
Aliás, a personagem Filipe, arquiteto paisagista no município de Odemar, algures na costa alentejana, apresenta um perfil, técnico e pessoal, em que me revejo. Revejo-me no seu percurso, na sua militância e na defesa das suas convicções. Com ele percebi que não era tão único quanto algumas vezes imaginei. Pensei nos 308 municípios portugueses e nos 308 técnicos cujo perfil pode confundir-se com o meu ou com o deste Filipe, ficcionado.
Já o perfil do político Luís Morais me pareceu menos conseguido, precisamente a partir do momento-chave em que renuncia ao seu cargo de primeiro-ministro. Se o romance "Equador" me surpreendeu pela imprevisibilidade estonteante do seu final, a resignação de Luís Morais, acontecimento com que este romance praticamente termina, não me convenceu. Um político sem escrúpulos não desistiria com tanta facilidade, e tudo faria para manipular a imprensa e desacreditar Filipe, antes que este se "atrevesse" a denunciá-lo.
Termino com uma declaração de interesses: gosto de Miguel Sousa Tavares pelo que continuarei, certamente, a ler os seus livros.
Amaral, Bruno Vieira. 2013. Guia para 50 personagens da ficção portuguesa. Lisboa: Guerra & Paz
A 4 de outubro de 2013 estive na apresentação deste livro, feita pelo próprio autor, na Biblioteca Municipal de Mondim de Basto. Bruno Amaral sublinhou a importância da relação que se estabelece entre o leitor e "a" personagem. Somos seres de relação e a literatura é uma manifestação dessa condição. Segundo o autor, a profundidade dos relacionamentos que estabelecemos com as personagens das nossas leituras chega a ser, com relativa facilidade, mais forte do que as que estabelecemos com pessoas reais. Numa espécie de confidência afirmou ter chorado após a leitura do episódio da morte do velho Afonso Maia (de Os Maias de Eça de Queirós): "tive de fechar o livro e chorei" como se de um familiar próximo se tratasse.
Questionado, após a sua intervenção, sobre a forma como via o sucesso literário de alguns autores que muito devem ao facto de, à partida, serem figuras públicas de outras áreas de intervenção, nomeadamente animadores e "pivots" de canais de televisão, Bruno Amaral disse haver necessidade de distinguir entre "literatura" e "publicação de livros". Sublinhou, no essencial, o que já havia afirmado na sua intervenção: ler certos livros é um mero exercício lúdico, como fazer uma viagem num "comboio de feira"; entramos, fazemos um determinado percurso por entre uns quantos cenários e situações, mais ou menos surpreendentes, mas logo regressamos ao ponto de partida; saímos como entramos; a leitura em nada tocou o nosso ser, em nada nos modificou; não é assim com a literatura; esta afecta-nos realmente e, após a viagem que através dela empreendemos, após o convívios com a personagem ou as personagens dessa ficção, somos "outro", somos diferentes.
O texto lido por Bruno Amaral, na sessão de apresentação, está publicado no seu "blog" Circo de Lama, sob o título Criar Personagens. Vale a pena lê-lo. Não apenas pela sua qualidade literária como pela reflexão sobre o tema da criação da personagem, do modo como o autor com ela convive e, enfim, chega ao leitor.
O livro, em si, é um catálogo de "bonecos", um album de "cromos" que o autor compôs criteriosamente e guardou para si ao longo de anos de leitura. Cada referência deste catálogo, "jardim antropológico da ficção portuguesa", no subtítulo, é um pequeno ensaio, de duas páginas, que esboça o retrato, sobretudo psicológico, da personagem escolhida, no seu contexto social. Uma ilustração da sua condição limitada e efémera, filtrada pelo olhar do seu criador (o autor do romance de onde é retirado), do Bruno Amaral e, por fim, como num jogo de espelhos, por nós, enquanto leitores do leitor e deste leitor-narrador.
Amostras:
Sobre Walter Glória Dias, personagem de Lídia Jorge, do romance O Vale da Paixão (1998):
"Podíamos dividir as personagens de ficção em duas categorias: os sedentários e os nómadas. Os que não saem de um limitado espaço geográfico, embora emocionalmente possam navegar para muito longe, e os que têm no mundo inteiro a sua casa, nascidos sob o signo da êrrância." (Amaral 2013: 33)
Sobre o Viúvo, personagem de Fernando Dacosta, do romance O Viúvo (1986):
"Por cada homen que embarcou nas caravelas, por cada emigrante que partiu à procura de uma outra vida, por cada soldado para as colónias, houve sempre alguém que ficou, sedentário, cingido à terra como um enxerto numa árvore, incrustado na ferida do país, a sonhar o que os outros fizeram, observando-os a uma distância segura." (Amaral 2013: 37)
Sobre Juliana, personagem de Eça de Queirós, do romance O Primo Basílio (1878):
"Nem sequer admitimos a redenção, ela [a personagem] que nem pense em arrepender-se. Queremos que prossiga na senda da maldade, até ao fim, para que o castigo - tem de haver um castigo - sacie a nossa sede de justiça e a ficção cumpra a sua função catárquica." (Amaral 2013: 45)
Sobre o Professor, personagem de José Rentes de Carvalho, do romance A Amante Holandesa (2003):
"Um dos fascínios de ficção é o de nos predispor a simpatizar com pessoas que, se fossem reais, não hesitaríamos em condenar. (...) As palavras que aparecem em Guerra e Paz tranquilizam-nos a consciência: «Tout comprendre, c'est tout pardonner.» E nós compreendemos este homem. E perdoamo-lo. (Amaral 2013: 195 e 196)
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